China x Tibete: por que a escolha do próximo Dalai Lama tem mais a ver com geopolítica do que com religião?


Líder espiritual do budismo tibetano completa 90 anos neste domingo (6) e começa a tratar da sucessão. Enquanto isso, China quer influenciar a escolha para reforçar o controle sobre o Tibete. Entenda como funciona a sucessão do Dalai Lama
O Dalai Lama completa 90 anos neste domingo (6). Nesta semana, o líder do budismo tibetano falou sobre a própria sucessão e mandou um recado: seus seguidores devem rejeitar qualquer nome indicado pelo governo chinês. Mas afinal de contas, o que a China tem a ver com isso?
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▶️ Contexto: Os seguidores do Dalai Lama aguardavam há muito tempo uma declaração sobre a continuidade da religião. No passado, o atual chefe espiritual chegou a dizer que poderia ser o último a ocupar o posto. Agora, ele indica que a tradição continuará viva e que ele irá reencarnar.
Pela crença budista, o Dalai Lama pode escolher onde e quando irá reencarnar. Ele também representa a unidade do Tibete — que atualmente está sob administração chinesa.
A China quer determinar quem será a reencarnação do líder espiritual, em uma estratégia de ampliar o domínio sobre a região.
O budismo tibetano acredita que o Dalai Lama seja uma manifestação de uma entidade superior conhecida como Avalokiteshvara ou Chenrezig.
A tradição determina que, após a morte do Dalai Lama, os monges iniciem as buscas para encontrar a criança na qual o líder espiritual reencarnou.
A tentativa de influência chinesa na religião gerou preocupação internacional, com Estados Unidos e Índia se posicionando ao lado do Dalai Lama.
Apesar de a questão estar imersa em um contexto religioso, especialistas veem o momento como uma disputa geopolítica capaz de mexer no tabuleiro asiático.
🗺️ Território em disputa: Atualmente, o Tibete é uma “Região Autônoma” sob controle da China. A história da região, no entanto, é marcada por períodos de independência e momentos de dominação estrangeira.
Historicamente, o Tibete teve períodos de domínio mongol e chinês. O Dalai Lama era a principal autoridade local.
Em 1904, o território foi invadido por tropas britânicas. Com a queda da dinastia Qing, na China, o Tibete declarou independência em 1913.
O 13º Dalai Lama assumiu e governou o território até a sua morte, em 1933.
Em 1937, monges tibetanos reconheceram Tenzin Gyatso, então com quatro anos, como a reencarnação do Dalai Lama. A entronização oficial ocorreu em 1940.
⚔️ Conflito: As tensões entre o Tibete e a China começaram a crescer no fim da década de 1940. À época, o governo chinês queria reincorporar a área, já que considerava a região como parte histórica de seu território.
Em 1950, tropas chinesas invadiram o Tibete. O Dalai Lama, então com 15 anos, assumiu como chefe de Estado.
Em 1951, sob pressão, representantes tibetanos assinaram um acordo reconhecendo a soberania chinesa. Houve resistências isoladas nos anos seguintes.
Em 1959, eclodiu uma grande revolta do povo tibetano contra a China. A repressão chinesa levou o Dalai Lama ao exílio na Índia, onde criou um governo no exílio.
Desde então, o Dalai Lama nunca mais retornou ao Tibete, e a região está sob o total controle da China.
O que está em jogo agora
O Dalai Lama durante evento no templo de Tsuglakhang, na Índia, em 30 de junho de 2025
AP Foto/Ashwini Bhatia
Desde que o Dalai Lama deixou o Tibete, a China manteve um controle restrito sobre a região. O governo chinês argumenta que a tomada de poder acabou com os tempos de servidão e tirou o território do atraso.
⚖️ Poder X Religião: Ao longo dos últimos 65 anos, protestos contra a China aconteceram com frequência no Tibete. O governo chinês responsabiliza o Dalai Lama pelos distúrbios e o classifica como “separatista”.
Ondas de manifestações se repetiram, inclusive nos anos 2000.
Em janeiro de 2012, protestos deixaram mortos e fizeram Pequim pedir estabilidade. O governo tibetano no exílio disse que as ações chinesas atingiram um novo nível de repressão.
Com a idade avançada do Dalai Lama, a China intensificou os movimentos para definir quem será seu sucessor.
Pequim afirma ter esse direito por causa do legado imperial. Na prática, no entanto, a China busca garantir um Dalai Lama aliado do governo para ampliar o controle sobre o Tibete.
👉 No passado, durante o Império Chinês, a escolha do Dalai Lama e de outros altos cargos do budismo tibetano chegou a ser feita com a chamada “Urna Dourada”. Nesse modelo, os nomes dos candidatos eram colocados em um recipiente e sorteados após uma oração.
Atualmente, a China defende que a escolha da reencarnação do Dalai Lama deve seguir esse método e insiste que o próximo líder precisa nascer dentro do território chinês.
👁️‍🗨️ Outro precedente: O caso recente mais emblemático de interferência chinesa no budismo tibetano aconteceu em 1995, na nomeação do Panchen Lama.
O Panchen Lama é a segunda autoridade no budismo tibetano e tem papel fundamental: ele reconhece a reencarnação do Dalai Lama, e vice-versa.
Em 1995, o Dalai Lama reconheceu como Panchen Lama um menino de 6 anos chamado Gedhum Choekyi Nyima.
Apenas três dias depois, o menino e sua família desapareceram. Organizações de direitos humanos acusaram a China de sequestro.
O governo chinês diz saber onde Nyima está, mas fornece poucas informações sobre ele.
Além disso, Pequim se recusou a reconhecer Gedhum Choekyi Nyima como Panchen Lama e indicou outro nome para o cargo.
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Tabuleiro geopolítico
O presidente da China, Xi Jinping, durante Congresso Nacional Popular, em 5 de março de 2025
REUTERS/Tingshu Wang
A China enxerga o Tibete como um tema que vai além da religião. O território é considerado sensível para a segurança nacional e estratégico no contexto geopolítico. Há, porém, preocupações sobre a forma como Pequim conduz essa disputa, especialmente em relação aos direitos humanos. Países ocidentais e até mesmo a Índia costumam apoiar o Dalai Lama.
Posição americana: A disputa pela sucessão do Dalai Lama virou um ponto de atrito entre os EUA e a China. Isso acontece em meio à crescente competição global entre os dois países.
Os EUA dizem estar comprometidos com os direitos humanos dos tibetanos.
Recentemente, parlamentares americanos afirmaram que não aceitarão que China escolha quem será o próximo Dalai Lama.
Em 2024, o então presidente Joe Biden sancionou uma lei que pressiona Pequim a negociar mais autonomia para o Tibete.
Segundo pesquisa do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), lideranças dos EUA, Europa e Ásia se mostraram dispostos a correr alguns riscos para promover a liberdade religiosa no Tibete.
Vizinho aliado: A Índia abriga o Dalai Lama desde 1959 e se tornou peça-chave na disputa pela sucessão, ainda que evite confrontos diretos com a China.
Estima-se que mais de 100 mil tibetanos vivam e trabalhem na Índia.
O Dalai Lama é reverenciado por muitos indianos e visto como ativo geopolítico para o país.
Na quinta-feira (3), um ministro da Índia afirmou que só o Dalai Lama e sua fundação podem escolher o próximo líder espiritual do budismo tibetano.
Em resposta, a China pediu que a Índia pare de usar o Tibete para interferir em assuntos internos chineses.
Desde 2020, China e Índia vivem em tensão por áreas disputadas na fronteira, em uma região montanhosa entre o Tibete e o território indiano.
Em entrevista ao podcast “The Asia Chessboard”, em 2021, a especialista em política internacional e direitos humanos Ellen Bork lembra que o Tibete funcionava como um grande tampão geográfico entre China e Índia, e que sua ocupação está na raiz dos atuais conflitos de fronteira.
“Se não fosse pela ocupação do Tibete, as questões da fronteira sino-indiana não existiriam. Índia e Tibete têm afinidades culturais e religiosas históricas”, explica.
🧭 Disputa por influência: Para especialistas, a escolha do próximo Dalai Lama não é apenas uma questão de religião ou direitos humanos, mas um ponto estratégico no tabuleiro de poder da Ásia.
Mike Green, pesquisador do CSIS, afirma que a sucessão no budismo tibetano é uma questão crucial para o governo chinês preservar sua autoridade sobre o território diante da comunidade internacional, já que o Dalai Lama exerce influência muito além do Tibete.
Ele aponta que o planalto tibetano tem importância geográfica, de recursos hídricos e militar, o que o torna essencial para Pequim.
Green relata ainda que, em 2008, autoridades chinesas colocavam questões como Tibete e Taiwan como prioridades absolutas, sendo que o território tibetano era visto como especialmente sensível e ameaçador para a segurança nacional.
Além disso, ao longo dos anos, vários grupos de direitos humanos e a própria ONU apontaram violações de direitos humanos na região.
Para Ellen Bork, o Tibete virou ponto-chave para influenciar negociações bilaterais e organizações internacionais.
Ela analisa ainda que, enquanto as democracias não pressionarem a China sobre o assunto, o governo chinês continuará fortalecendo sua influência.
“O Tibete se torna, junto com algumas outras questões, uma espécie de ponta de lança ou via de influência. E acho que isso faz parte do ataque deles ou da tentativa de promover normas antidemocráticas, de distorcer o Conselho de Direitos Humanos para que o Tibete não possa ser discutido de forma livre”, diz.
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