
Noite do Beijo de 1981 em Sorocaba é tema de documentário
A Ditadura Militar no Brasil acabou em 1985, e a censura à liberdade de expressão, em 3 de agosto de 1988, com a promulgação da Constituição Federal. Mas a luta para revelar fatos obscuros da época não terminou ali, ressaltam pesquisadores e vítimas da repressão em Sorocaba (SP).
Uma das características do período, que durou 41 anos, foi a censura de artistas, de escritores e da imprensa. A divulgação de informações sobre problemas sociais e econômicos era controlada pelo governo civil-militar.
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“Tão perniciosa quanto a censura às artes, foi a censura à imprensa, que escondia da população as mazelas do país, como a grave epidemia de meningite de 1974”, declarou ao g1 o artista gráfico, diretor de arte e jornalista Carlos Baptistella, 62 anos.
Carlos é um dos idealizadores do protesto contra a repressão em Sorocaba, em 1981, que ficou conhecido como a Noite do Beijo. Com mais de cinco mil pessoas, a manifestação chamou a atenção para a decisão da Justiça de Sorocaba que proibiu o beijo em público alegando “questões morais”. O protesto rendeu um documentário em 2021 (veja o teaser acima).
Protesto contra a censura ao beijo reuniu mais de cinco mil pessoas em Sorocaba (SP), em 1981: restrição à liberdade de expressão acabou em 3 de agosto de 1988, com a Constituição Federal
Pedro Viegas
Segundo Baptistella, a Noite do Beijo tem a ver com o repúdio ao autoritarismo. “É um movimento em defesa do direito das pessoas de se autorregular. É resistência à repressão”, explica.
Além do documentário, o famoso episódio em Sorocaba foi parar nas páginas dos livros, com o lançamento em 2013 de “Noite do Beijo!”, no qual o próprio Baptistella mistura realidade e ficção para tratar do assunto.
Para ele, se fosse realizada hoje, a Noite do Beijo teria como bandeira ainda a defesa de populações vulneráveis contra a violência doméstica e a sexual.
“Nestes casos, as crianças e as mulheres, principalmente da periferia, são as principais vítimas. A Noite do Beijo chamaria atenção para o respeito aos direitos delas”, diz.
Capa do documentário “Noite do Beijo – Ontem e Hoje”, que aborda o famoso protesto em Sorocaba, em 1981, contra decisão de juiz que proibiu beijos em público
Carlos Baptistella/Arquivo pessoal
Dia do fim da censura
A censura federal acabou em 3 de agosto de 1988, com a entrada em vigor da Constituição. Por essa razão, a data é lembrada como o Dia do Fim da Censura no Brasil.
Na opinião da jornalista Fernada Ikedo, de Sorocaba, a mobilização precisa ser constante para preservar a memória e iluminar episódios de um período marcado por torturas, mortes e ameaças à liberdade de expressão.
“A luta é atual. Não só para combater as fake news de agora, mas para trazer a público as verdades de um passado que ficaram escondidas por causa da censura”, afirma Fernanda, em entrevista ao g1.
Ela é autora de um livro-reportagem e um documentário sobre o período da ditadura militar, sob a ótica regional de Sorocaba. “Ditadura e Repressão em Sorocaba: Histórias de quem resistiu e sobreviveu”, publicado em 2003, relata a batalha estudantil durante a ditadura militar.
A obra deu origem ao documentário “Porque Lutamos! (2009), com depoimentos que contam a história do estudante sorocabano Alexandre Vannucchi Leme, preso, torturado e morto no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em março de 1973.
A jornalista Fernanda Ikedo, de Sorocaba (SP), produziu um livro-reportagem e um documentário sobre as vítimas da repressão durante a ditadura militar, no município
Davi Monteiro/Arquivo pessoal
Teatro censurado
Alvo de censores nas décadas de 1960 e de 1970, o dramaturgo, produtor teatral, professor e pesquisador Roberto Gill Camargo, de 74 anos, lembra que aspectos sobre religião e liberdade eram vetados nas peças. “Liberdade era uma palavra proibida no palco”, destaca Camargo, em entrevista ao g1.
Cópia dos textos era enviada para a Polícia Federal, em São Paulo, e seguia para Brasília (DF), de onde podia sair ou não com o Certificado de Censura, lembra o dramaturgo sorocabano, autor de livros sobre teatro e iluminação cênica.
Além dos textos, a censura observava o aspecto visual da peça. De acordo com Camargo, geralmente dois censores eram designados para assistir pessoalmente ao ensaio geral. Eles podiam aprovar na íntegra ou sugerir cortes de cena.
Anotações realizadas por censores da ditadura militar, em texto da peça “Bacco e a Orgia dos Tempos”, produzida pelo dramaturgo Roberto Gill Camargo, em Sorocaba (SP), em 1969
Roberto Gill Camargo/Arquivo pessoal
Duas peças do dramaturgo sofreram cortes da censura: “Bacco e a Orgia dos Tempos” (1969) e “Entreato” (1976). Ele guarda até hoje os textos rabiscados em vermelho pelos censores com trechos a serem alterados ou suprimidos (veja na imagem acima).
“Após o AI-5 (ato em 1968), o período ficou bastante complicado para o teatro nos anos que seguiram. Mas todas as peças que enviei nesses anos receberam o certificado e estrearam normalmente”, explica Camargo, que também deu depoimento para a Comissão da Verdade de Sorocaba, em 2014.
Ele revela que sempre seguiu as determinações nas apresentações locais e nos diversos festivais de que participou na época. Outros diretores de Sorocaba, conforme conta, também se submeteram às mesmas exigências da censura federal.
“Era para todos, sem distinção. Já em SP e Rio a censura não poupou nem textos premiados, como foi o caso de ‘Rasga Coração’, de Vianninha”, lembra.
O pesquisador analisa que, para superar a censura naquele período, os artistas se valeram de uma “explosão” de criatividade, de inspiração e de beleza.
“Mesmo carrancuda, a musa gritou com beleza e paixão”, resume Camargo.
O dramaturgo, pesquisador teatral e professor Roberto Gill Camargo, de Sorocaba (SP), que teve textos de peças censurados, durante os anos 1960 e 1970
Arquivo pessoal
Comissão da Verdade
Uma das iniciativas para preservar a memória do período em Sorocaba foi a instalação da Comissão da Verdade pela Câmara dos Vereadores, em 2014.
A comissão registrou depoimentos de várias pessoas perseguidas pelo regime militar. Os registros das sessões foram enviados para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, implantada pela Assembleia Legislativa.
Para o professor de filosofia Daniel Lopes, 42 anos, presidente do Sindicato dos Professores em Escolas Particulares de Indaiatuba, Salto e Itu, e um dos coordenadores na época, a Comissão da Verdade contribuiu para revelar as ações repressivas da ditadura que ninguém fazia ideia que foram praticadas em Sorocaba.
O professor Daniel Lopes, que ajudou a coordenar os trabalhos da Comissão da Verdade da Câmara dos Vereadores de Sorocaba (SP), em 2014
Arquivo pessoal
Uma das revelações marcantes foi a de que o mais jovem desaparecido político da ditadura era natural de Sorocaba.
Marco Antonio Dias Baptista tinha apenas 15 anos de idade quando desapareceu por volta do mês de maio de 1970. Ele integrava a luta armada e foi perseguido por militares quando vivia na clandestinidade em Goiás.
“O irmão dele prestou depoimento para a comissão. Várias pessoas foram ouvidas em diversas sessões. Tudo isso ajudou a mostrar de que forma a repressão e a censura agiram em Sorocaba. Eram fatos restritos a uma ou outra pessoa antes, a população não tinha noção disso”, conta Daniel Lopes.
Mecanismo da censura
O professor Mateus Gamba Torres, do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), lembra que músicas, shows, peças de teatro, novelas, livros, filmes e jornais passavam pela censura dos órgãos responsáveis pelo controle dos conteúdos antes que chegassem ao público.
De acordo com o professor, os problemas sociais e econômicos eram “escondidos”, e como as denúncias contra o governo eram censuradas, isso passava uma imagem de que não havia nenhum problema no país.
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