Nova espécie de borboleta amazônica troca ‘favores’ com formigas e inseto durante fase larval


Na imagem, a formiga Camponotus femoratu ao lado da lagarta (borboleta) e das cochonilhas
Luísa Mota
Imagine uma borboleta que, em vez de comer folhas, se alimenta de substâncias produzidas por cochonilhas que vivem em bambus. E mais: que oferece secreções adocicadas para formigas em troca de proteção.
Foi assim, quase como um segredo escondido entre as matas do norte do Mato Grosso, que pesquisadores descobriram a Annulata kaminskii, uma nova espécie registrada nas Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) Cristalino, em Alta Floresta, a 790 km de Cuiabá.
A borboleta protagoniza uma relação ecológica tão rara e complexa que, segundo os pesquisadores, nunca havia sido registrada entre borboletas em nenhuma parte do mundo.
Annulata kaminskii é nova espécie de borboleta registrada nas Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) Cristalino
Luísa Mota
Quatro organismos diferentes interagindo em cadeia – o bambu, a cochonilha (pequenos insetos que possuem o hábito de sugar a seiva das plantas), a lagarta e as formigas. Um verdadeiro “acordo ecológico” que está ajudando os cientistas a repensar o que sabem sobre a natureza.
A descoberta foi publicada em julho deste ano na revista científica Neotropical Entomology, e contou com apoio das agências de fomento Capes, CNPq e Fapesp.
A relação que surpreendeu a ciência
Ao contrário da maioria das borboletas, cujas lagartas se alimentam de folhas, as da Annulata kaminskii têm uma dieta líquida. Elas consomem o néctar e a cera produzidos por cochonilhas que vivem em bambus.
Em troca, produzem uma secreção adocicada, que é consumida por duas espécies diferentes de formigas. Essas formigas, por sua vez, protegem as lagartas contra predadores.
Essa é a primeira vez que alguém descreve uma interação quadritrófica. Temos o bambu, as cochonilhas que se alimentam dele, a lagarta que se alimenta das secreções dessas cochonilhas, e as formigas que se alimentam das secreções da lagarta. Cada nível trófico a mais exige mais energia, e isso só é possível em um ambiente tão diverso quanto a Amazônia
A formiga Camponotus femoratus é conhecida por sua agressividade e picadas dolorosas
antpassionant/iNaturalist
Um ‘guarda-costas’ de peso
Outra descoberta impressionante é que duas espécies de formigas convivem e cuidam da mesma lagarta – o que nunca havia sido registrado em borboletas. Uma dessas formigas é altamente agressiva, o que representa uma proteção eficaz para as pequenas lagartas.
Essas formigas são a Camponotus femoratus, de maior porte, e a Crematogaster levior, que é menor. As duas vivem em parabiose, ou seja, compartilham o mesmo ninho, uma relação também pouco comum na natureza.
“A Camponotus femoratus é extremamente agressiva, a ponto de até vertebrados evitarem o contato. Isso mostra que a lagarta conseguiu um protetor de peso”, explica Noemy, que é professora do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP).
Duas espécies de formigas – Camponotus femoratus (maior) e Crematogaster levior (menor, no canto esquerdo inferior da foto) – convivem e se alimentam das secreções das lagartas
Luísa Mota
Além de se beneficiar da proteção das formigas, a lagarta da Annulata kaminskii também sabe retribuir o favor. Ela possui estruturas especializadas para produzir recompensas alimentares às suas protetoras: os chamados órgãos tentaculares e o exsudato anal.
Os órgãos tentaculares ficam localizados na parte traseira do corpo da lagarta e, quando estimulados pela presença das formigas, liberam uma substância doce e energética que elas adoram.
Já a exsudato anal consiste em outro tipo de fluido açucarado, igualmente nutritivo. Essas estruturas funcionam como uma “moeda de troca”, garantindo que as formigas continuem por perto, fazendo a guarda da lagarta contra possíveis predadores.
A busca pela borboleta
A descoberta começou a partir do trabalho de campo da bióloga Luísa Mota, primeira autora do estudo, durante seu doutorado na Unicamp, quando ela coletou os primeiros exemplares da borboleta.
“Eu queria estudar mimetismo em borboletas amazônicas, então procurei um local onde pudesse passar um tempo fazendo coleta e observações. O Cristalino Lodge foi indicado pelo meu orientador André Freitas por ser uma área rica em biodiversidade e que também valoriza a ciência. Entrei em contato e recebi o apoio da Fundação Ecológica Cristalino (FEC), que me permitiu morar lá por um ano para realizar a pesquisa”, conta Luísa, pesquisadora do Laboratório de Ecologia e Sistemática de Borboletas (LABBOR) da Unicamp.
A bióloga Luísa Mota durante trabalho de campo na RPPN Cristalino
Junia Carreira
Durante esse período, a pesquisadora percorreu trilhas da reserva particular onde está o lodge, explorando diferentes habitats, como bambuzais, florestas de terra firme e áreas alagadas, e coletando borboletas para compor um inventário de espécies da região.
“Foi nesse processo que encontrei dois indivíduos de uma borboleta diferente, em momentos distintos, mas no mesmo ponto de coleta”, relembra.
A descoberta levou à elaboração da maior lista de borboletas já registrada em uma única localidade do Brasil, com mais de mil espécies.
Depois disso, Luísa voltou ao Cristalino com a pesquisadora Noemy Seraphim para uma nova etapa da pesquisa: buscar os estágios imaturos da borboleta – ou seja, suas lagartas – e entender melhor sua ecologia.
A pesquisadora Noemy Seraphim durante trabalho de campo em busca dos estágios imaturos da borboleta para entender melhor sua ecologia
Luísa Mota
“Encontramos as lagartas em um único bambuzal, interagindo com cochonilhas e com as duas espécies de formigas. Foi ali que descobrimos uma interação ecológica extremamente especializada e inédita”, relata.
Além de observar o comportamento em campo, as pesquisadoras também tentaram criar as lagartas em laboratório para comprovar que elas pertenciam à nova espécie. Como as lagartas dependem do néctar produzido pelas cochonilhas, a criação foi desafiadora.
Ao contrário da maioria das borboletas, cujas lagartas se alimentam de folhas, as da Annulata kaminskii consomem o néctar e a cera produzidos por cochonilhas que vivem em bambus
Luísa Mota
“As cochonilhas pararam de produzir o exsudato, e começamos a alimentá-las com uma solução feita com água, gema e açúcar. Elas até aprenderam que eu vinha com comida, esticavam a cabecinha quando me aproximava com o palito”, conta Luísa.
A confirmação definitiva veio por meio da análise genética feita pela também autora do artigo, Patrícia Machado, que comprovou que as lagartas pertenciam à nova espécie descrita no trabalho.
O que a Amazônia ainda pode revelar?
Noemy ressalta a importância de seguir investindo em ciência e pesquisa em ambientes tropicais como a Amazônia, onde ainda há muito a ser descoberto, especialmente entre os invertebrados.
Com seus 11.399 hectares, a RPPN Cristalino forma, ao lado do Parque Estadual Cristalino, um valioso corredor ecológico que protege espécies endêmica
Marcos Amend
“As borboletas são os insetos mais bem estudados do mundo, por serem carismáticas e bonitas. E mesmo assim, a gente ainda encontra espécies novas, com histórias naturais completamente diferentes. A Amazônia pode nos ajudar até a repensar os fundamentos da ecologia, que foram baseados em estudos feitos em regiões temperadas, com muito menos diversidade”, afirma a bióloga.
A descoberta da Annulata kaminskii reforça o papel essencial das RPPNs Cristalino, mantidas pela Fundação Ecológica Cristalino (FEC). Há mais de duas décadas, a instituição apoia pesquisas científicas e atua na preservação da biodiversidade amazônica, uma floresta que, mesmo no século XXI, ainda guarda segredos capazes de transformar o que sabemos sobre a vida na Terra.
Borboletas nas margens do rio Cristalino
Luísa Mota
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