
Artista de circo vira chefe da família aos 25 anos após perder os pais em tragédia aérea
Aos 25 anos, Eduarda Castelo Hübner parecia flutuar. Dedicada ao tecido acrobático, arte que levava como profissão, tinha o apoio incondicional da família para sonhar – e assim o fazia, imaginando um futuro entregue ao circo e, quem sabe, vivendo no exterior. Tudo isso foi colocado em pausa quando, em agosto de 2024, recebeu a notícia de que o avião em que os pais viajavam havia caído.
No voo 2283, que saiu de Cascavel (PR) com destino a Guarulhos (SP), estavam Nélvio José Hübner, de 49 anos, e Gracinda Marina Castelo da Silva, de 47, casados há 25 anos e pais de três filhos. Ela era professora universitária com raízes em Portugal, onde nasceu; ele, procurador municipal, ocupando também o “cargo” de ser o “solucionador de problemas” da família.
E assim, nos 81 segundos que a aeronave levou para atingir o solo após perder o controle, o tempo parou. O futuro de Eduarda deixou de ser só dela e passou a envolver também os irmãos, especialmente a pequena Alice, então com 11 anos, por quem virou legalmente responsável. De repente, a “dançarina dos ares” se viu lidando com questões como inventário, pensão e tutela.
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Antes, a minha preocupação era comigo, com os meus sonhos e o meu futuro. Eu ainda tinha meus pais se preocupando por mim, para me dar essa liberdade de arriscar e de tentar. Com o acidente, eu perdi essa base e ganhei uma outra, que foi de todas as responsabilidades de manutenção da casa, cuidado com a Alice, com os avós. Coloquei de lado um pouco os meus sonhos.
Este conteúdo integra a cobertura especial do g1 sobre a queda do voo 2283. Na semana em que o desastre completa um ano, reportagens em texto e infográficos resgatam a identidade das vítimas e detalham os desdobramentos da investigação sobre a maior tragédia aérea do país desde 2007.
Como parte dessa cobertura, o g1 lançou na quarta-feira (6), em parceria com a EPTV, afiliada da TV Globo, o documentário “81 segundos” (ASSISTA AQUI), que retrata o impacto da tragédia nas famílias de algumas das 62 vítimas.
O nome do filme remete ao tempo que a aeronave levou para atingir o solo após perder o controle. Na sexta (8), a produção será exibida após o Globo Repórter nas 319 cidades da área de cobertura da EPTV. Após a exibição, o filme ficará disponível também no globoplay.
Eduarda Castelo Hübner, então com 25 anos, deixou sonho de ser artista circense de lado para virar chefe da família após acidente aéreo
Rodrigo Coutinho/QPS
O antes
Na casa, pequenos sinais denunciam uma rotina familiar que deixou de existir. Em uma das paredes da cozinha, o recado escrito com giz pela mãe antes de viajar continua no mesmo lugar, traçado repetidas vezes pelos filhos ao longo dos meses para não se apagar: “Amo vocês. Mãe e pai. Cuidem-se”.
Há também as lembranças que não estão escritas nas paredes, mas ecoam pelos cômodos. Vão de memórias sutis, como o papel de parede instalado pelo pai, que sempre teve um lado “faz-tudo”, à caixinha que guarda os bilhetes românticos trocados pelo casal na juventude.
“Gosto de lembrar dos meus pais de maneira que eles sempre davam o melhor deles em tudo. Tudo que eles colocavam energia, faziam entrega total, sabe? O meu pai era mais do jeito calado dele, mais quietinho, mais tímido. E a minha mãe era expansiva. Onde ela chegava, ela falava um monte, estava sempre alegre. E os dois sempre juntos”, conta Eduarda.
Nélvio e Gracinda eram casados há 25 anos
Arquivo pessoal
Nélvio e Gracinda também dividiam um anseio pela vida que se refletia em viagens e música – muitas vezes unindo ambas as coisas. Quando o acidente aconteceu, os dois estavam a caminho de São Paulo para aproveitar um show do cantor Ney Matogrosso.
“Meus pais estavam numa fase de aproveitar a vida. Acho que o pós-pandemia mexeu muito com eles nesse sentido. Meu pai falava muito da urgência. ‘Eduarda, passa muito rápido. Aproveita’. Então eles estavam viajando muito. […] Eles não eram superfãs do Ney Matogrosso, mas eram superfãs de curtir a vida”, lembra a filha.
Na garagem, mais uma lembrança da vida que pulsava nos dois. Duas motocicletas de grande porte estacionadas ao lado de quadros que exibem lembranças de uma das maiores aventuras de Nélvio e Gracinda: uma viagem de motocicleta até Ushuaia, na Argentina, que durou cerca de 17 dias.
Eu sempre espero eles voltarem. Eu acho que… Não sei… Talvez depois de um ano. Talvez depois de alguns anos passe. Porque eles só foram assistir a um show.
Sempre unidos, Nélvio e Gracinda compartilhavam a paixão pela motocicleta
Arquivo pessoal
O durante
No dia do acidente, Eduarda ainda estava em Goiânia, onde fazia um curso de formação para artista de circo. Às 11h49, recebeu uma das últimas mensagens da mãe no grupo da família em um aplicativo: “Embarcamos agora”, dizia o texto, acompanhado por uma foto do casal.
“E a minha mãe sempre superprotetora. ‘Se cuidem. Se cubram do vento frio. Felipe, não esquece a Alice na escola’. Essas coisas de mãe. E aí, eu peguei o celular, vi que eles estavam indo viajar e respondi ‘boa viagem'”, lembra a filha.
O avião decolou às 11h56 e o voo seguiu tranquilo até 13h20. De acordo com a Força Aérea Brasileira (FAB), a partir das 13h21 a aeronave não respondeu às chamadas do Controle de Aproximação de São Paulo. Relembre aqui a cronologia do voo.
A notícia do acidente chegou para a filha mais velha por volta das 15h30, quando ela acessou o celular durante o intervalo do curso. Nas redes sociais, a queda do avião no interior de São Paulo monopolizou as postagens e acendeu um alerta para Eduarda.
“A mensagem para o meu pai já não chegava. […] Meu pai nunca deixou de atender meu telefone. Nunca. Ele podia estar numa reunião, o que fosse, mas sempre me atendia. Perguntava se era urgente e, se não fosse, ele falava ‘quando eu terminar aqui, a gente se fala’. Ele não receber [as mensagens] já foi a confirmação”, conta.
Foram familiares e amigos que ajudaram a conectar os nomes na lista extraoficial de passageiros. Foi Eduarda quem organizou a viagem a São Paulo para o processo de identificação, quem se responsabilizou por avisar os irmãos e quem começou a reorganizar a vida da família.
No começo, eu digo que era um luto muito egoísta, individualista. No sentido de ‘eu não estou pronta. Eu precisava de vocês aqui. Eu queria vocês aqui’. E hoje, conforme os problemas aparecem, a gente vai resolvendo. A gente vai se sentindo capaz. Hoje, eu sinto um luto diferente. Que é o luto por eles mesmo. De olhar eles na melhor fase da vida e falar… Por que aconteceu isso agora?
Casal deixou três filhos; Eduarda é a mais velha
Arquivo pessoal
O depois
Hoje, paira um silêncio quase doloroso sobre a casa onde moram os três irmãos. Alguns cômodos parecem maiores e mais vazios. Na cozinha, as cadeiras da mesa de jantar que antes eram ocupadas por Nélvio e Gracinda sinalizam a ausência que virou rotina.
Eu não penso no futuro porque eu não consigo imaginar o futuro. Eu não consigo, por exemplo, pensar que eu vou casar e eles não vão me levar até o altar. Eu quero ter filhos, mas meus filhos não vão conhecer os meus pais. Eu não consigo ainda planejar, então vou vivendo um dia de cada vez. Vou planejando o amanhã, e aí faço o projeto a curto prazo.
Aos poucos, Eduarda tenta se reconhecer de novo. No alto dos tecidos, onde antes experimentava leveza e invenção, agora há pausas e hesitações. A arte, que antes representava liberdade e a leveza de um futuro em aberto, agora carrega o peso do que se perdeu.
“O tecido significava tudo. Era como eu podia me expressar, expressar quem eu era, o que eu via para a minha vida como artista, como professora. Eu ainda estava nessa descoberta do que eu queria ser de fato. E hoje eu acho que eu estou redescobrindo isso. Quem eu sou e quem eu passei a ser”, diz a artista.
“Eu preciso ter algo na minha vida que faça sentido, então eu estou me organizando para me entender em relação ao tecido, para abrir meu negócio. Hoje eu penso no futuro de forma ampla. Vou levando um dia de cada vez. […] A gente nunca acha que vai ser com a gente, né? É sempre com os outros. E uma hora a gente é os outros dos outros”, diz.
Eduarda tenta se reencontrar com o tecido acrobático, arte que levava como profissão antes do acidente
Rodrigo Coutinho/QPS
O acidente
O avião com 58 passageiros e quatro tripulantes caiu no condomínio Residencial Recanto Florido, no bairro Jardim Florido, no início da tarde.
A aeronave decolou às 11h56 e o voo seguiu tranquilo até 12h20. Segundo a plataforma Flightradar, avião subiu até atingir 5 mil metros de altitude às 12h23, e seguiu nessa altura até as 13h21, quando começou a perder altitude.
Nesse momento, a aeronave fez uma curva brusca. Às 13h22 — um minuto depois do horário do último registro — a altitude estava em 1.250 metros, uma queda de aproximadamente 4 mil metros. A velocidade dessa queda foi de 440 km/h.
A aeronave atingiu o quintal de uma casa do condomínio e os moradores saíram ilesos. Ninguém em solo ficou ferido. O morador da residência atingida afirma que a família ficou em choque.
O relatório preliminar do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), divulgado no dia 6 de setembro do ano passado, trouxe informações relevantes sobre o acidente em Vinhedo.
Uma dessas informações foi de que a tripulação relatou uma falha no sistema antigelo. O relatório, contudo, não conseguiu confirmar, com base nos dados da caixa-preta, se isso de fato aconteceu e impactou o desempenho da aeronave.
Pilotos ligados à companhia também relataram viagens exaustivas, condições precárias e ligações da empresa durante folga. Após o acidente, passageiros também compartilharam nas redes sociais experiências ruins envolvendo a companhia.
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Destroços de avião em Vinhedo
Miguel Schincariol/AFP
O que diz a Voepass
Em nota, a Voepass informou que a queda do voo 2283 foi “o episódio mais difícil” da história da companhia e que, um ano após a tragédia, segue “solidária às famílias das vítimas”, mantendo “suporte psicológico ativo” e apoiando homenagens realizadas ao longo do período.
A empresa afirmou que “sempre atuou cumprindo com as exigências rigorosas que garantem a segurança” das operações e que a frota “sempre esteve aeronavegável e apta a realizar voos”, conforme padrões internacionais.
A companhia também afirmou que colabora com as investigações em andamento e reafirmou compromisso com a apuração dos fatos e com “a melhoria contínua nos processos de segurança da operação aérea”.
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