
Um ano após queda de avião, viúva recria rotina para filho autista lembrar do pai
Às sextas-feiras, José Carlos Copetti – ou Caú, como preferia ser chamado – tinha um ritual: chegava das viagens de trabalho causando um estardalhaço no condomínio onde morava, em Jacareí (SP), usando a buzina do carro para avisar à família e aos vizinhos que estava lá. A tradição chegou ao fim em uma sexta-feira fria e chuvosa, em 9 de agosto de 2024, quando o avião em que ele viajava não o trouxe de volta para casa.
José Carlos, de 45 anos, estava entre as 62 vítimas da queda do voo 2283, que saiu de Cascavel (PR) com destino a Guarulhos (SP). Naquele 9 de agosto, não houve buzina, sorriso ou reencontro. No lar que o gerente de logística construiu com a esposa, Beatriz Copetti, sobrou somente o silêncio, a vaga vazia na garagem e uma saudade que hoje se traduz nas pequenas coisas da rotina.
A rotina, inclusive, foi a forma que a agora viúva encontrou para fazer o filho Eduardo, de 12 anos, se sentir próximo do pai. Diagnosticado com transtorno do espectro autista (TEA) nos primeiros anos de vida, o menino perdeu o chão após uma partida sem despedidas da pessoa que levava como maior referência. Passou a ter crises mais intensas, rejeitou lembranças e até se recusou a ver fotos de Caú.
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Para tentar reorganizar o mundo do filho, Beatriz decidiu recriar a rotina que os dois dividiam. Voltou a levá-lo para pescar, manteve os domingos no estádio do Corinthians e refez, dentro do possível, o caminho de volta ao que faz Eduardo se sentir em casa. Aos poucos, as memórias que doíam passaram a ser uma forma de proteção.
Eu tento passar para os meus filhos que a gente tem que seguir e olhar para frente, porque o passado já foi. A gente tem que viver o presente e o futuro, pensando que ele vai estar orgulhoso de a gente estar aqui, fazendo o que está fazendo, seguindo feliz e fazendo as nossas coisas da melhor maneira que a gente pode.
Este conteúdo integra a cobertura especial do g1 sobre a queda do voo 2283. Na semana em que o desastre completa um ano, reportagens em texto e infográficos resgatam a identidade das vítimas e detalham os desdobramentos da investigação sobre a maior tragédia aérea do país desde 2007.
Como parte dessa cobertura, o g1 lançou na quarta-feira (6), em parceria com a EPTV, afiliada da TV Globo, o documentário “81 segundos” (ASSISTA AQUI), que retrata o impacto da tragédia nas famílias de algumas das 62 vítimas.
O nome do filme remete ao tempo que a aeronave levou para atingir o solo após perder o controle. Na sexta (8), a produção será exibida após o Globo Repórter nas 319 cidades da área de cobertura da EPTV. Após a exibição, o filme ficará disponível também no globoplay.
Beatriz Copetti ao lado do filho, Eduardo Copetti
Estevão Mamédio/g1
Quem era Caú?
Para entender o impacto da perda de José Carlos, é preciso entender o lugar que ele ocupava. Era pai, mas também melhor amigo; marido, mas também alicerce; amigo, mas também fio condutor. Era ele quem comandava a churrasqueira, animava os encontros e parecia mover montanhas para fazer as pessoas ao redor felizes.
“Ele tinha uma personalidade muito forte. Era bem sistemático, mas tinha um coração enorme. Era sempre prestativo, ajudava os vizinhos. Era uma pessoa que tinha muitos amigos, gostava muito de fazer churrasco, de reunir a galera e onde a gente ia, ele conversava com as pessoas. E ele tinha muita fé em Nossa Senhora Aparecida”, conta a esposa, com um sorriso no rosto.
José Carlos ao lado da esposa, Beatriz, e dos filhos, Eduardo e Nicole
Arquivo pessoal
Para os filhos, Caú ocupava um lugar ainda mais importante. A mais velha, de 25 anos, não o via há cerca de um ano por morar no exterior, mas o pai fazia questão de ligar sempre e, emocionado, dizer que estava com saudade. Com o mais novo, Eduardo, a conexão se fortaleceu depois que o menino foi diagnosticado com autismo, déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), transtorno opositor desafiador (TOD) e epilepsia.
“O Eduardo gostava muito de pescar. Apesar de ele ser muito agitado por causa do TDAH, ele se encontrou na pescaria, então ele [José Carlos] acabou gostando da pescaria por conta do Eduardo, porque era o momento que eram os dois ali, eles passavam o dia pescando e ao mesmo tempo, ele também se acalmava, porque o meu marido era muito agitado”, lembra Beatriz.
Aos domingos, era dia de pai e filho irem à Neo Química Arena, estádio do Corinthians. “Ele [Eduardo] começou a gostar de ir pro jogo, se adaptou ao barulho da torcida, por incrível que pareça. Ele ama ver a galera gritar, grita junto e canta as músicas. Eles acabaram ficando muito próximos”.
Eu acho que esses três últimos anos foram os melhores, porque ele [José Carlos] aproveitou muito o Eduardo, acabou aceitando todas as dificuldades que a gente tinha, aceitando o diagnóstico dele, vendo que tinha uma outra forma de a gente viver, e que a gente estava bem e feliz.
José Carlos Copetti ao lado do filho, Eduardo Copetti, em jogo do Corinthians
Arquivo pessoal
Última lembrança
No mesmo dia em que receberam a reportagem, mãe e filho pisaram, pela primeira vez, no estádio do Corinthians em silêncio. Sem a multidão, sem os cantos, somente cadeiras vazias e um eco das lembranças. Eduardo parou, olhou em volta e apontou o assento onde ficou na última vez.
“Era uma emoção única, só nossa, que ninguém pode entender e nunca vai se quebrar. […] Ainda lembro dele quando tem uns assentos vazios do lado, parece que é ele. […] Saudade, né. Mas se for na Neo Química [Arena], esses lugares que ele sempre estava, dá pra lembrar dele”, diz o filho.
Ali, naquele solo sagrado para os corintianos, a família viveu uma despedida sem saber. Uma semana antes do acidente, Beatriz decidiu acompanhar o marido e o filho ao estádio. São-paulina, vestiu a camisa do Corinthians e, entre risos e coros, torceu ao lado dos dois.
A gente estava quase estacionando o carro, e ele falou para o Dudu: ‘se um dia acontecer alguma coisa com o pai, eu quero que você lembre desses momentos, que você leve pra sua vida, pros seus filhos, porque isso vai ser um momento que você sempre vai ter’. Parecia que ele sabia que ia morrer. Me marcou muito, porque foi o último domingo que eles estiveram juntos.
Beatriz Copetti ao lado do filho, Eduardo Copetti, no estádio do Corinthians
Rodrigo Coutinho/QPS
O acidente
O avião com 58 passageiros e quatro tripulantes caiu no condomínio Residencial Recanto Florido, no bairro Jardim Florido, no início da tarde.
A aeronave decolou às 11h56 e o voo seguiu tranquilo até 12h20. Segundo a plataforma Flightradar, avião subiu até atingir 5 mil metros de altitude às 12h23, e seguiu nessa altura até as 13h21, quando começou a perder altitude.
Nesse momento, a aeronave fez uma curva brusca. Às 13h22 — um minuto depois do horário do último registro — a altitude estava em 1.250 metros, uma queda de aproximadamente 4 mil metros. A velocidade dessa queda foi de 440 km/h.
A aeronave atingiu o quintal de uma casa do condomínio e os moradores saíram ilesos. Ninguém em solo ficou ferido. O morador da residência atingida afirma que a família ficou em choque.
O relatório preliminar do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), divulgado no dia 6 de setembro do ano passado, trouxe informações relevantes sobre o acidente em Vinhedo.
Uma dessas informações foi de que a tripulação relatou uma falha no sistema antigelo. O relatório, contudo, não conseguiu confirmar, com base nos dados da caixa-preta, se isso de fato aconteceu e impactou o desempenho da aeronave.
Pilotos ligados à companhia também relataram viagens exaustivas, condições precárias e ligações da empresa durante folga. Após o acidente, passageiros também compartilharam nas redes sociais experiências ruins envolvendo a companhia.
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Imagem feita por drone mostra trabalho das equipes de emergência em local da queda do avião da Voepass em Vinhedo (SP), em 10 de agosto de 2024.
Carla Carniel/ Reuters
O que diz a Voepass
Em nota, a Voepass informou que a queda do voo 2283 foi “o episódio mais difícil” da história da companhia e que, um ano após a tragédia, segue “solidária às famílias das vítimas”, mantendo “suporte psicológico ativo” e apoiando homenagens realizadas ao longo do período.
A empresa afirmou que “sempre atuou cumprindo com as exigências rigorosas que garantem a segurança” das operações e que a frota “sempre esteve aeronavegável e apta a realizar voos”, conforme padrões internacionais.
A companhia também afirmou que colabora com as investigações em andamento e reafirmou compromisso com a apuração dos fatos e com “a melhoria contínua nos processos de segurança da operação aérea”.
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