
Humberto e a esposa Romilda com os bispos Dom Joaquim Mol (à esq.) e Dom Tarcísio (à dir.)
Arquivo Pessoal
Da Cracolândia de Santos ao altar de Deus — e dele para os pobres. É assim que o autônomo Humberto dos Santos Júnior, de 70 anos, resume a trajetória que viveu e segue trilhando dentro da Igreja Católica. No começo do mês, ele foi ordenado diácono, após anos enfrentando a dura realidade das ruas e o vício em álcool e drogas.
Segundo Humberto, tornar-se diácono não foi exatamente uma escolha pessoal, mas um chamado reconhecido pela própria Igreja, que enxergou em sua trajetória um compromisso genuíno com o serviço aos mais vulneráveis. Na tradição católica, um diácono é um ministro ordenado que exerce funções de serviço, liturgia e evangelização.
“A Igreja vai observando a caminhada da pessoa, identifica nela um espírito de serviço e, então, a encaminha para a formação diaconal”, explicou.
O autônomo contou que desde o momento em que se recuperou do vício do álcool e das drogas, que durou 14 anos, passou a realizar atividades em prol das pessoas em situação de rua e com dependência química e alcoólica, assim como ele havia enfrentado. Após ser convidado pela igreja, foram oito anos de estudo para se tornar diácono.
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A trajetória religiosa de Humberto começou ainda na infância, quando sua mãe o levava, junto com os irmãos, para a igreja. Com o passar dos anos, porém, ele perdeu o interesse e deixou de frequentar. Aos 12 anos, começou a consumir álcool, embora ainda não fosse dependente.
Aos 15 anos, a família de Humberto, que vivia no Nordeste, se mudou para o Rio de Janeiro. Pouco tempo depois, ele ingressou no Exército, onde permaneceu até os 19 anos. Foi após deixar a vida militar que teve o primeiro contato com a cocaína, oferecida por uma colega. Ele decidiu experimentar e acabou se tornando dependente.
“Já viciei [na droga] logo de cara e já comecei a desandar”, relembra.
Na época, os pais se mudaram para Santos, enquanto ele permaneceu no Rio de Janeiro, morando com as tias e trabalhando para elas. Ele começou a faculdade de Ciências Contábeis, mas abandonou o curso por conta do vício.
Ainda no Rio de Janeiro, Humberto teve uma companheira, com quem teve uma filha. Com o agravamento da dependência química, acabou perdendo o emprego e acumulando dívidas de condomínio e prestações.
Para quitar parte dessas dívidas, precisou vender um apartamento que havia comprado em Santos com as economias do período em que trabalhava para as tias. Diante da situação, decidiu se mudar com a família para Cubatão, onde passou a viver com os pais.
Vida na rua
No entanto, o autônomo decidiu que a vida não podia continuar do jeito que estava e que não era uma pessoa adequada para viver com a família dele. A partir disso, ele resolveu sair de casa, ir morar na rua e foi se “abrigar” na ‘Cracolândia’, em Santos, onde permaneceu por aproximadamente 9 meses.
“Eu não tive muito problema em viver na rua porque sempre fui uma pessoa de bom relacionamento. Então, eu não me misturava com bandido. Quais eram os bandidos que eu me misturava? Com traficante”, contou Humberto.
Ele afirmou que tinha habilidade com serviços de obras e aí ganhava dinheiro fazendo pequenos reparos como pedreiro. “Até que um traficante me chamou para conversar e me fez uma proposta de que me alugaria um quartinho, daria comida e droga em troca de fazer a construção de um sobrado”.
Humberto contou que, ao aceitar a proposta de um traficante, acabou se tornando “escravo”. Durante o período em que viveu nas ruas, perdeu completamente o contato com a família. Ainda assim, o irmão conseguiu descobrir onde ele estava e foi até uma obra onde Humberto trabalhava, em um sobrado.
Segundo ele, o irmão pediu que voltasse para a casa dos pais, dizendo que a mãe estava muito preocupada. Humberto, no entanto, recusou o convite. Em outras ocasiões, a mãe, a filha, a ex-companheira e uma prima também tentaram convencê-lo a deixar as ruas — sem sucesso.
Humberto com a Irmã Olga de Souza, fundadora da Casa do Povo de Deus, em Cubatão (SP), onde foi recuperado do vício
Arquivo Pessoal
Nova chance
Humberto contou que o momento em que decidiu voltar para a casa da mãe foi extraordinário. “Eu estava em uma roda usando droga e uma voz dentro de mim falou assim: ‘Levanta daí e volta para sua casa’”. Ele lembra ter questionado quem estava falando.
“Olhei para um lado e para o outro e a voz: ‘Levanta daí e volta para a sua casa’ e eu estava muito louco, estava usando droga”, relembrou.
Humberto então retornou à casa e foi acolhido pela mãe. No entanto, o pai decidiu ir embora para o Rio de Janeiro, pois não quis permanecer no mesmo local que o filho. “Foi uma dificuldade porque eu não consegui sair da dependência”.
Ao retornar, foi acolhido pela mãe, mas o pai decidiu se mudar para o Rio de Janeiro, pois não quis permanecer na mesma casa. “Foi uma dificuldade porque eu não consegui sair da dependência”, disse.
Embora não usasse drogas dentro de casa, Humberto admitiu que roubava objetos da mãe. “Pegava dinheiro, roubava as coisas de casa para trocar por droga. Aí eu consegui um trabalho para poder sustentar o meu vício”.
Clínica para reabilitação
Sem suportar ver o filho naquela situação, a mãe o levou para a Casa do Povo de Deus, em Cubatão, fundada pela irmã Olga de Souza. Lá, Humberto ficou internado por um ano.
“Lá era só vida espiritual, as freiras, os irmãos, a gente rezava mais do que fazer qualquer coisa, então era só oração, oração, oração, oração, tudo que a gente fazia era com oração”, contou.
Segundo ele, o período de tratamento foi “indispensável para Deus fazer uma obra” em sua vida. “A grande graça é que, na verdade, eu não saí porque é a família que vai buscar o interno. Eu entrei com a minha mãe e quando eu saí quem foi me buscar foi meu pai”.
A partir dali, iniciou um novo capítulo: voltou ao mercado de trabalho e mergulhou na vida religiosa. “Eu vivia na igreja, minha vida era igreja, grupo de oração, missa, trabalhava na comunicação da igreja e numa dessas andanças da igreja eu conheci a Romilda [atual esposa]”.
Humberto, junto com o pai que leva o mesmo nome e a mãe, Maria Nair
Arquivo Pessoal
Da Cracolândia ao altar de Deus
Humberto contou que sempre que visita a mãe, de 83 anos, no Rio de Janeiro, ela chora ao vê-lo. “É uma coisa muito forte porque ela vê esse milagre que aconteceu na minha vida, né? Então ela está muito feliz”. Inclusive, ela esteve presente na ordenação diaconal.
“Eu me sinto fazendo aquilo que Deus fez na minha vida. Eu faço como uma retribuição e como uma missão. Não é um desencargo de consciência. Eles estão doentes e precisam de ajuda, e se eu, por meio do meu testemunho, alcancei essa graça da cura, da libertação e da transformação de vida por meio da espiritualidade, acredito que todo mundo pode também”, disse ele.
Humberto acompanhado da filha, dos netos, da mãe e da esposa Romilda na missa em celembração aos 25 anos de sobriedade
Arquivo Pessoal
Por conta da forte inclinação à área social, que Humberto considera uma habilidade concedida por Deus, o bispo Dom Tarcísio Scaramussa decidiu que, após sua ordenação diaconal, ele atuará exclusivamente no vicariato, dedicando-se ao cuidado das pessoas pobres.
“Eu não seria completo se a minha ordenação diaconal não fosse para servir ao pobre, aos meus irmãos, e foi até um mandato de Deus para mim, quando estava na comunidade terapêutica. Ele disse assim no meu coração: ‘eu vou te curar e você vai para a rua e vai buscar os teus irmãos, meus filhos, que estão na mesma situação que você estava e vai dizer que eu posso curá-los'”, finalizou.
Humberto durante uma roda de conversa com moradores em situação de rua em um abrigo de Praia Grande, SP
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