
Revelações e relatos foram feitas pelo amigo, jornalista e escritor Afonso Borges, em Belo Horizonte, no dia da morte do fotógrafo. Sebastião Salgado cantava enquanto fazia fotografias
Há cerca de dois meses a cozinheira Ivonete, que trabalha na casa do jornalista e escritor Afonso Borges, preparou uma costelinha com canjiquinha para o almoço. O prato tipicamente mineiro foi feito para agradar as visitas: Tião, Lelinha e Juliano. Tião era o apelido carinhoso do fotógrafo Sebastião Salgado, que foi visitar o amigo acompanhado da esposa Lélia e de um dos filhos.
“Ele (Sebastião) não parava de comer, ele falava: gente isso aqui é a melhor coisa que eu comi na minha vida. Claro que não era, era pra agradar”, disse Afonso, na sala de casa, perto da mesa em que o almoço aconteceu.
Além de gostar da comida mineira, Sebastião Salgado — que nasceu em um vilarejo sem luz elétrica, perto de Aimorés, no Vale do Rio Doce, mas viveu por anos na Europa — nunca deixou as “mineirices” pra trás. Tião, já no alto dos seus oitenta anos, ainda cantava as músicas que ouvia quando pequeno.
“A memória que ele tinha para as letras de música era uma coisa inacreditável. Ele não só cantava e canta muito bem, como eu não entendia como é que ele lembrava de canções que ele aprendeu com quatro, cinco, seis anos, principalmente numa Aimorés e aí eu tô contando a história que ele me contou, que não tinha rádio. Não tinha rádio, como é que ele ouvia as histórias, como é que ele ouvia as músicas? Todo domingo ia uns caminhoneiros levar gêneros alimentícios, em Aimorés […] quando eles chegavam lá, os caminhoneiros tiravam as baterias do carro e ligavam os rádios e ficava o domingo inteiro ouvindo música. Então essa criança que ouvia música só aos domingos tem as músicas até hoje decoradas na cabeça dele'”, disse Afonso.
O amigo não só sabe que Tião lembrava das músicas, como comprova por meio de áudios que recebia por meio de um aplicativo de mensagens. Num dos áudios, Sebastião canta:
“Criança feliz, feliz a cantar, alegre a embalar, seu sonho infantil. Ó meu bom Jesus, que a todos conduz, olhais as crianças do nosso Brasil. Crianças com alegria, igual um bando de andorinhas, ouviram Jesus que dizia: vinde a mim as criancinhas. Ouve no céu um aceno, os anjos dizem amém porque Jesus nazareno foi criancinha também”
Segundo a amigo, a habilidade de cantar também era usada por Sebastião enquanto fotografava. (ouça áudio acima)
“Todas as fotos da vida dele ele fotografou cantando. Ele cantava internamente e aí você imagina aquele ser humano, que ficou durante 30 dias deitado no alto de uma montanha, camuflado, fotografando a guerra em Ruanda, ou aquele cara que rodou tantos lugares na Amazônia e tantos lugares pelo mundo afora, ao clicar cantava uma música, contou Afonso”
Os áudios que Sebastião mandava para Afonso também revelam histórias da vida em Aimorés. Em um deles Sebastião conta:
“Quando eu era menino, eu apostava corrida de cavalo com o trem. Era na época daquelas maria-fumaça e meu cavalinho corria, corria na berada da estrada de ferro e eu ficava olhando só pro limpa-trilho que vinha e o limpa-trilho ia ficando pra trás e a gente ganhava do trem. Eu tinha um cavalinho que era um diabo!”
Para Afonso, apesar de Sebastião ter rodado o mundo, Tião nunca saiu de Minas Gerais.
“Sebastião Salgado nunca saiu de Aimorés, ele morou em Paris a vida inteira, Sebastião Salgado é o único brasileiro a integrar a Academia de Artes e Letras e Ciências da história da França. Nunca nenhum outro foi, é o único. Mas eu sinto que o Tião nunca saiu de Aimorés”.
Jornalista Afonso Borges, Sebastião Salgado, Rodrigo Salgado, filho do fotógrafo, e Iara, esposa de Borges, em uma selfie. ‘Tião não gostava de selfies’, revelou o jornalista.
Acervo Pessoal
Último presente
Em um local de destaque no apartamento de Afonso, em Belo Horizonte, está uma fotografia de Sebastião Salgado que mostra um grupo de indígenas Waurá pescando na lagoa Piyulaga, em Mato Grosso. A imagem faz parte do livro “Amazônia” e foi um presente do fotógrafo para Afonso há cerca de cinco anos.
Quem escolheu a foto foi escritor. Segundo ele, a imagem é a materialização do conto de Guimarães Rosa, “A terceira margem do rio”.
Na época, Salgado ainda não tinha lido o conto. Mas depois de ler, concordou com Afonso e ainda fez uma revelação:
“Tenho que te contar um segredo: é a foto que eu mais gosto do livro, disse Afonso relembrando uma fala do fotógrafo”, completou.
Na época Salgado não autografou a imagem. Mas fez isso recentemente. Depois de comer a costelinha com canjiquinha, Tião deixou as iniciais no verso do quadro, como último presente para o amigo.
Fotografia de Salgado na parede da casa de Afonso Borges.
Reprodução/TV Globo
Assinatura de Sebastião Salgado no verso da fotografia.
Reprodução/TV Globo
A cor Sebastião Salgado e o amor por Lelinha
Além da assinatura, a fotografia na parede da casa de Afonso tem outra particularidade: foi impressa na mesma gráfica italiana onde os livros do fotógrafo eram feitos.
Segundo o amigo, por causa dos anos de trabalho na mesma gráfica, a tinta criada e usada para a impressão dos materiais acabou recebendo o nome de Sebastião Salgado.
Mas poderia ter também o nome de Lélia, é que a esposa do fotógrafo, que é arquiteta e design foi a grande realizadora dos livros e exposições do marido.
Para o amigo, Sebastião Salgado só foi o grande fotógrafo que foi, por ter Lélia ao lado.
“Ele dizia […], que ele não seria nada na vida sem a Lelinha, e a Lelinha cuidava dos livros, cuidava da vida particular, pessoal, profissional, econômica dele, cuidava do escritório, fazia das grandes exposições. Não tem jeito de explicar a relação, a vida do Sebastião Salgado sem Lélia Wanick Salgado”, disse Afonso.
O Instituto Terra
Foi Lélia quem teve a ideia de reflorestar a fazenda da família de Salgado, em Aimorés. Em 1998, por iniciativa dela, o casal criou o Instituto Terra e começou a replantar árvores da Mata Atlântica. Hoje, a área que estava devastada, viu a biodiversidade retornar.
“O Instituto Terra é a realização do grande sonho da vida do Sebastião Salgado. Ele sempre disse isso, mais do que disse, ele fez. Ele e Lélia, agora o Juliano Salgado que assumiu, o filho dele que assumiu a presidência, eles fizeram dali não só um projeto de reflorestamento natural, durante esses 25 anos, é mais do que isso, é um exemplo pro planeta, um exemplo pra humanidade, disse Afonso.
Escritor e jornalista Afonso Borges.
Reprodução/TV Globo
Morreu de amor pela humanidade
No ano passado, quando Salgado completou 80 anos, Afonso, que realiza festivais literários, disse ao amigo que programaria eventos para celebrar a carreira do fotógrafo. Mas Tião confessou que não queria mais homenagens.
“Eu fiz 80 anos, eu já cumpri tudo que eu tinha que cumprir daqui pra frente, que quero só descansar, ficar com a Lelinha e com o Digo”, disse Afonso repetindo uma fala de Sebastião.
De acordo com o amigo, o fotógrafo parecia forte, mas sofreu durante anos com dores e incômodos pelo corpo. Inclusive, só tomava um remédio fabricado no Brasil e, por isso, Afonso precisava sempre enviar caixas do medicamento para França.
“Sebastião Salgado, na minha opinião, morreu de amor pela humanidade. Por uma brincadeira do destino, a sua morte foi determinada por consequências e sequelas das oito, sete malárias que ele pegou pelo mundo. Pegou na Indonésia, muitas na África e as malárias foram corroendo o seu organismo”, completou.
Em um texto publicado nas redes sociais, Afonso ainda acrescentou que a morte de Sebastião pode ter sido ainda um alerta.
“Morreu contaminado por um protozoário transmitido por um mosquito, que transmite a malária. O que isso quer dizer? Quer dizer que até na morte Tião mandou um recado: onde está a vacina da malária? Interessa ao Ocidente gastar milhões de dólares para desenvolver uma vacina para uma doença predominante no continente africano?, escreveu.
Cinzas de Tião
O corpo de Sebastião Salgado será cremado, no cemitério Père Lacheise, em Paris, na próxima sexta-feira (30) e, segundo o amigo Afonso, serão levadas para o Instituto Terra em Aimorés, nos próximos meses.
Vídeos mais assistidos do g1 MG