Santa Ceciliers e Faria Limers: bairros influenciam como pessoas pensam e são decisivos no acesso a bens e serviços, dizem pesquisadores da USP


Para o sociólogo Bruno Fonseca, se referir a alguém geograficamente é algo bem comum no Brasil, como chamar o amigo de ‘carioca’ ou ‘mineiro’. Mas, impulsionado pela internet, o bairro passou a incorporar elementos simbólicos de pertencimento a determinados grupos. Bairros influenciam como pessoas pensam e são decisivos no acesso a bens e serviços
Como é a casa de um Santa Cecilier? Ou como se veste um Faria Limer? Se você pensou em algo relacionado a piso de taco e samambaias, de um lado, e coletes puffer e sapatênis, de outro, você consegue captar alguns arquétipos sociais de São Paulo.
O sociólogo Bruno Fonseca, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), explica que o termo é usado para se referir a grupos de pessoas que representam um jeito de ser que muita gente conhece e reconhece.
“A localização geográfica influencia tanto materialmente, ao ser decisiva no acesso a bens e serviços, como escolas, hospitais, cinemas, teatros, parques, quanto simbolicamente, na questão de pertencimento ao grupo, a ser reconhecido por outros por ter alguma identidade. E esse segundo fenômeno é bem familiar a todos.”
No caso de Santa Ceciliers e Faria Limers, fenômenos recentes na internet, os arquétipos ajudam a entender comportamentos e a enxergar a maneira como ambos simbolizam estilos opostos de vida em São Paulo — e isso vai além da localização geográfica.
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Os primeiros valorizam estética alternativa, arte e debates progressistas, enquanto os segundos gostam de alta performance, luxo discreto e bem-estar corporativo. Os dois, no entanto, usam o espaço urbano para expressar distinção e pertencimento.
Para o sociólogo, se referir a alguém geograficamente é algo bem comum no Brasil, como chamar o amigo de “carioca” ou “mineiro”. Segundo ele, a prática é comum em sobrenomes de diversos países como York ou Devon, que carregam identidades do território como uma referência direta ao local de onde a família vem.
Acontece que, nos últimos anos, localização territorial passou a incorporar elementos simbólicos de pertencimento a determinados grupos, impulsionados pela internet. Nas redes (e na vida real), reproduzir essas práticas culturais virou uma espécie de manual não oficial de como viver, vestir e consumir.
“Essas classificações não são necessariamente para quem nasceu ou mora nos bairros mencionados. São categorizações que tentam delimitar um conjunto de práticas culturais e sociais. É uma delimitação de arquétipo de pessoa.”
“É esse o fenômeno da construção digital dos simbólicos urbanos, que atende as necessidades contemporâneas de produção de diferenciação, mas também de pertencimento e participação em comunidades”, avalia.
Boneco ‘faria limer’.
Divulgação/ Corby Toys
Em São Paulo, essa construção de identidades também funciona para outras regiões da cidade:
Na Zona Oeste, os “Vilamadalovers”, numa referência à Vila Madalena, gostam de arte e feirinhas de antiguidades;
Na Zona Leste, o “Mooquense raiz” desfila com camisa do Juventus e tem um sotaque inconfundível, assim como a cultura funk e do “rolezinho” em Itaquera;
No Centro, quem vive no Bixiga não perde um samba aos finais de semana;
Na Zona Sul, a cultura hip hop do Capão Redondo está presente nas roupas e faz parte da identidade periférica.
Influências do bairro
O bairro onde se mora também influencia na maneira como as pessoas percebem, sentem, vivem e atribuem significados aos espaços. Dois moradores da mesma cidade podem ter percepções completamente diferentes dela, explica José Diniz, doutorando em sociologia pela USP.
Enquanto um jovem que mora na Santa Cecília, no Centro, pode ver o bairro como um polo cultural alternativo, uma pessoa de outro ponto de São Paulo pode enxergar o mesmo lugar como um espaço elitizado.
O inverso também acontece. Um morador de Itaquera, na Zona Leste, pode ter um vínculo afetivo com o bairro que envolve memória e identidade e vai além da infraestrutura ou dos serviços que o lugar oferece.
Segundo o pesquisador, da mesma forma que esses comportamentos comunicam de “maneira aceitável”, como gostar de Caetano Veloso, ir a cinemas de rua ou “rolezinhos” no parque, podem também funcionar como produtores de distinção se adotarem “estereótipos tenebrosos”.
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“O Santa Cecilier vai ser sempre um tipo de grupo caracterizado por um certo “bom gosto”: são sujeitos que sabem apreciar arte e gastronomia. Se a gente for analisar outros tipos de identidades, vamos encontrar grupos de pessoas que se caracterizam pelo oposto disso: pessoas que, na concepção geral, possuem gostos duvidosos e formas de interação problemáticas”, diz.
“Um exemplo clássico, mas atual, são pessoas que frequentam bailes funk, que sempre são associados com crime, baixa escolaridade, etc. São categorias que expõem tensões do tempo presente e podem repercutir uma ideia geral sobre raça, classe, sexualidade e percepções de gênero.”
Segundo ele, esses “memes” privilegiam comportamentos aceitáveis para um determinado grupo, ao passo que, em outros contextos, favorecem características inaceitáveis, transgressoras ou criminosas.
“O Santa Cecilier também pode deixar de ser uma identidade de bom gosto e pode ser interpretado como um ‘cultura branca’, ‘esquerdopata’, ‘burguês’, ‘esquerdomacho’ e até em contextos homofóbicos. O estereótipo é propício para a acusação e funciona um pouco na lógica das redes digitais”, avalia.
Enquanto um jovem que mora na Santa Cecília, no Centro, pode ver o bairro como um polo cultural alternativo, uma pessoa de outro ponto de São Paulo pode enxergar o mesmo lugar como um espaço elitizado.
João de Mari/g1
Desigualdades
Lançado no final de 2024, o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo analisou 96 distritos da capital com base em dez indicadores sociais. Segundo a pesquisa, o lugar onde se vive também determina o acesso a recursos públicos e, principalmente, a rotina.
Em São Paulo, quem mora em Pinheiros, na Zona Oeste, gasta cerca de 25 minutos de transporte público no pico da manhã. Já quem tem que sair de Marsilac, no extremo Sul, demora 1h10min em média.
Na capital, o território também influencia a idade média ao morrer. A expectativa de vida para quem mora no Alto de Pinheiros, bairro nobre da Zona Oeste, é uma média de 82 anos. Já para quem vive em Anhanguera, periferia na Zona Noroeste, cai para 58 anos — uma diferença de 24 anos entre os extremos.
A projeção histórica produzida pelos pesquisadores entre 2006 e 2023 mostra que, sem intervenções, Anhanguera só alcançará a mesma expectativa de Alto de Pinheiros por volta de 2065.
Para o sociólogo Bruno Fonseca, morar numa área distante das regiões de trabalho presencial tende a fazer com que você tenha outra relação com o emprego do que uma pessoa que mora ao lado dele.
“Morar numa região litorânea permite que você tenha outras formas de lazer do que alguém que mora em centros urbanos. São vários aspectos da vida do indivíduo condicionados pelo seu lugar de residência, inclusive culturais”, avalia.
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