
Investigação aponta que organização criminosa fraudou por mais de 10 anos contratos com o governo para desviar recursos públicos destinados à alimentação de famílias pobres. Investigação aponta desvio de verbas, uso de produtores mortos e distribuição de leite adulterado em programa estadual de assistência alimentar.
PF
Uma investigação sobre fraudes no programa Leite de Todos, que distribui leite para famílias em situação de vulnerabilidade em Pernambuco, resultou no indiciamento de 40 pessoas, entre empresários e servidores públicos. A apuração apontou que o grupo criminoso montou um esquema sofisticado que envolvia uso de cooperativas de fachada, falsificação de documentos, fornecimento de leite adulterado e lavagem de dinheiro.
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Segundo o relatório final do inquérito, de 636 páginas acessado pelo g1, a organização criminosa atuava de forma estruturada, contínua e com divisão clara de funções, praticando crimes como desvio de verbas públicas, falsidade ideológica, estelionato, corrupção, lavagem de dinheiro, crimes contra a saúde pública e embaraço às investigações.
Durante as investigações, foram encontrados recibos em nome de pelo menos 33 produtores rurais já falecidos, apresentados como fornecedores de leite para justificar repasses ao grupo. O produtor Francisco Alves de Lira, por exemplo, faleceu em 2011, mas teve seu nome usado em recibos datados de 2014. Situação semelhante foi identificada com José Ailton da Silva, morto no mesmo ano.
O esquema envolvia empresários ligados às empresas Natural da Vaca Alimentos LTDA, antiga Nutrir Produtos Lácteos LTDA, e Planus Administração e Participações, que gerenciavam, com o apoio da COOPEAGRI — Cooperativa de Pecuaristas e Agricultores de Itaíba. A entidade, que não possuía existência fática nem sede real, era usada para firmar contratos milionários com o governo estadual por meio de processos de inexigibilidade de licitação.
A Natural da Vaca e a Planus executavam os serviços formalmente atribuídos à cooperativa, o que permitia a simulação de legalidade nas contratações. Auditorias do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE) e análises da Controladoria-Geral da União (CGU) comprovaram que os valores pagos à COOPEAGRI não correspondiam aos serviços de fato prestados.
Desde 2014, a cooperativa firmou pelo menos quatro contratos com o governo estadual, totalizando dezenas de milhões de reais. Só um dos contratos recebeu mais de R$ 21 milhões até 2016. Parte dos recursos, no entanto, nunca chegou aos pequenos produtores rurais que deveriam ser beneficiados pelo programa.
Leite adulterado e em más condições
Laudos periciais da Polícia Científica apontaram que o leite fornecido estava em desacordo com os padrões de qualidade exigidos para consumo humano. Foram encontradas irregularidades na refrigeração e armazenamento do produto em centros de distribuição do Agreste e da Região Metropolitana do Recife. Em algumas visitas de fiscalização, até mesmo a presença de freezers em condições precárias ou inexistentes foi constatada.
Funcionários destruindo centenas de embalagens do produto lácteo “Leite da Merenda – Programa de Alimentação Escolar”
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Durante a deflagração da Operação Lácteos, em novembro de 2022, agentes flagraram o descarte de grande quantidade de leite da marca “Leite da Merenda” na sede da Natural da Vaca, mesmo dentro do prazo de validade, o que reforçou a suspeita de que o produto poderia ser usado como evidência de baixa qualidade.
Documentos falsificados de produtores mortos
Uma das fraudes mais graves reveladas pelo inquérito da Polícia Federal diz respeito ao uso de documentos falsificados em nome de produtores rurais já falecidos. Segundo a investigação, a organização criminosa produziu recibos ideologicamente falsos para simular a compra de leite de pequenos agricultores, com o objetivo de justificar repasses de dinheiro público à cooperativa de fachada.
De acordo com a apuração, pelo menos 33 pessoas mortas tiveram seus nomes utilizados indevidamente. Entre os casos identificados está o de um agricultor do Agreste de Pernambuco, falecido em 2011, mas que aparece como fornecedor de 1,5 mil litros de leite em 2014, três anos após a morte. Outro produtor, que morreu em março de 2011, figura como responsável pelo fornecimento de 5,4 mil litros no mesmo ano.
A prática não se limitava ao uso indevido dos nomes. O inquérito aponta que as assinaturas nos recibos eram falsificadas com o intuito de conferir aparência de legalidade aos documentos, e que parte desses recibos foi utilizada em prestações de contas encaminhadas à Secretaria de Desenvolvimento Agrário de Pernambuco, como comprovação de despesa do Programa Leite de Todos.
Ligação com ex-servidores públicos
Além de empresários e dirigentes das empresas envolvidas, o inquérito também resultou no indiciamento de ex-servidores da Secretaria de Desenvolvimento Agrário de Pernambuco (SDA/PE). Entre os investigados estão antigos ocupantes de cargos estratégicos, como chefias de gabinete, gerências jurídicas, setores responsáveis por articulação regional e processos de licitação.
Segundo o inquérito da Polícia Federal, parte desses ex-funcionários públicos teria atuado de forma deliberada para facilitar contratações milionárias entre o governo do estado e entidades sem atuação real, como uma nova organização de fachada criada após o desgaste da cooperativa inicialmente utilizada no esquema.
De acordo com a investigação, as práticas criminosas se estenderam por quase uma década, com uso de manobras como interposição de pessoas, constituição de empresas fictícias e movimentações financeiras suspeitas como saques em espécie de grandes valores sem identificação do destino final. Tais condutas configuram, segundo o relatório, elementos clássicos de lavagem de dinheiro e foram essenciais para garantir a longevidade e o funcionamento do esquema fraudulento.
Núcleos da organização
A organização criminosa era dividida em núcleos operacionais, conforme apontou a investigação: líderes, gerentes, auxiliares, responsáveis pela produção, testas de ferro, falsificadores, laranjas e servidores públicos.
Parte dos bens do grupo já está sob medidas judiciais de bloqueio e confisco, com o objetivo de ressarcir os cofres públicos e impedir a continuidade das atividades ilícitas.
O g1 entrou em contato com a empresa Natural da Vaca e com a COOPEAGRI para solicitar posicionamentos sobre os fatos citados, mas, até a última atualização desta reportagem, não obteve resposta.
Também foram acionadas as assessorias de imprensa do Governo de Pernambuco para que a Secretaria de Desenvolvimento Agrário se posicionasse sobre as suspeitas de falhas nos processos de contratação e a possível conivência de ex-servidores públicos com o esquema investigado.
Além disso, o g1 questionou se houve fiscalização quanto à procedência do leite distribuído a estudantes da rede estadual. Até a última atualização da reportagem, não houve retorno.