
Prisômetro no Centro de SP mostra o número de 1 mil pessoas presas pelo sistema de câmeras Smart Sampa
Divulgação/Secom/PMSP
Lançado em 2024 com a promessa de transformar a segurança pública da capital paulista por meio da tecnologia, o programa Smart Sampa — que utiliza câmeras de reconhecimento facial — não reduziu os principais indicadores de criminalidade da cidade, segundo pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
Intitulada “Smart Sampa vigia, mas não protege”, a pesquisa concluiu que não houve queda significativa nas taxas de furtos, roubos ou homicídios após a instalação do sistema. Além disso, o estudo não registrou aumento na produtividade policial, medida pelo número de prisões em flagrante ou cumprimento de mandados judiciais.
“Nosso estudo demonstra que as câmeras do programa Smart Sampa não se mostraram efetivas, porque, após mais de um ano de operação, não há qualquer evidência estatística de impacto na redução desses crimes, nem tampouco no aumento de prisões em flagrante ou por mandado judicial”, disse Thallita Lima, coordenadora de pesquisa do CESeC.
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O Smart Sampa foi lançado pela Prefeitura de São Paulo como a maior iniciativa de videomonitoramento da América Latina, com previsão de até 20 mil câmeras espalhadas pela cidade. A central de controle funciona 24 horas por dia, e o investimento mensal é de cerca de R$ 10 milhões.
Para Thallita, é preciso refletir sobre o custo de oportunidade dessa escolha. Segundo a coordenadora da pesquisa, esses recursos poderiam ser destinados a políticas com “comprovado impacto na redução da violência, como o fortalecimento do policiamento comunitário, programas de prevenção em territórios vulnerabilizados, urbanismo social, políticas de juventude e iluminação pública”, afirmou.
“Quando o Estado opta por investir nessa tecnologia, ele está, de fato, deixando de investir onde sabemos que pode haver retorno concreto e de longo prazo.”
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) divulgou nesta quinta-feira (31) o balanço das ocorrências do primeiro semestre de 2025. Segundo o Infocrim (Sistema de Informações Criminais), na capital paulista, os homicídios dolosos, quando há intenção de matar, e os furtos, aumentaram. Já os roubos, que são os assaltos com violência ou grave ameaça, tiveram queda em comparação com o mesmo período de 2024.
Homicídios dolosos: foram 221 registros no primeiro semestre do ano passado e 248, de janeiro a junho deste ano. Alta de 12,2%;
Furtos: passaram de 119.112 ocorrências em 2024 para 123.734, em 2025. Aumento de 3,8%;
Roubos: de 58.474 no ano passado para 50.358 neste primeiro semestre. Queda de 13,8%.
Durante a inauguração da central de monitoramento, em julho de 2024, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) afirmou que o sistema seria interligado com o banco de dados de foragidos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas o órgão negou as tratativas.
Meses depois, o prefeito instalou um “prisômetro” no Centro da cidade — um painel eletrônico que mostra o número de foragidos capturados com o auxílio das câmeras. A promessa da gestão era que a tecnologia aumentaria a segurança da população, retiraria criminosos das ruas e agilizaria o cumprimento de mandados de prisão.
Mil prisões pelo Smart Sampa
Segundo a prefeitura, hoje são mais de 31 mil câmeras espalhadas pela cidade. Com o sistema, 2.965 criminosos foram presos em flagrante, 1.558 foragidos da Justiça capturados e 79 pessoas desaparecidas localizadas.
A administração afirma que o estudo utilizou “comparações inadequadas” e teve “falhas de metodologia”. Para a prefeitura, um erro do estudo é comparar a capital com cidades do interior do estado, que possuem realidade social, econômica e criminal diferentes.
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“O Smart Sampa tem se mostrado uma ferramenta fundamental para o trabalho de investigação conduzido pela Polícia Civil. De novembro a maio, imagens de 275 ocorrências foram compartilhadas com o órgão, com contribuição determinante para o avanço de casos como o assassinato de um ciclista no Parque do Povo, a morte de um empresário durante um assalto nos Jardins e o atropelamento de um vigilante no Brás”, disse a prefeitura.
O CESeC rebate, afirmando que os números absolutos de prisões divulgados pela prefeitura refletem a continuidade da atuação policial, e não uma mudança causada pela tecnologia.
“Analisar o efeito de uma política pública de segurança não pode se resumir à tarefa de listar números absolutos de prisões e ocorrências, uma vez que tais números não mensuram de maneira confiável o fenômeno”, diz trecho da nota do projeto O Panóptico, do CESeC.
“É por isso que optamos por usar uma metodologia que leva em conta o contexto, o comportamento dos indicadores antes do início do programa e as diferenças populacionais dos locais comparados.”
Indicadores criminais
A pesquisa utilizou o método Diferença em Diferenças (DiD), técnica estatística comum na avaliação de políticas públicas, para comparar os índices criminais de São Paulo com os de outras cidades do estado que não implementaram o Smart Sampa — chamadas de grupo de controle. O estudo analisou dados entre março de 2024 e abril de 2025.
Apesar do alto investimento e da centralidade política do programa, o estudo concluiu que o Smart Sampa não teve impacto mensurável na redução de crimes nem no aumento da produtividade policial na cidade de São Paulo.
Após mais de um ano de operação, os dados mostram que as taxas de furtos, roubos, homicídios e prisões permaneceram estáveis ou variaram dentro da margem de erro, sem alterações que possam ser atribuídas ao uso do reconhecimento facial.
Entre os principais resultados:
A taxa de furtos aumentou levemente após a implementação, mas sem significância estatística;
As taxas de homicídios e assaltos permaneceram estáveis;
Não houve mudanças relevantes nas prisões em flagrante ou por mandado judicial.
Para a coordenadora do estudo, a crença de que o monitoramento constante das pessoas nas ruas, especialmente por meio de reconhecimento facial, leva automaticamente à redução da criminalidade não encontra respaldo nos dados disponíveis.
“No caso do Smart Sampa, mesmo com milhares de câmeras instaladas e funcionamento contínuo, não houve qualquer variação significativa nos principais indicadores criminais. Isso revela um ponto central: o monitoramento visual em larga escala não substitui uma política pública de segurança efetiva.”
Segundo ela, o monitoramento opera como um mecanismo de “controle simbólico”. Ou seja, uma forma de projetar a ideia de ação do poder público, sem que isso se traduza em resultados concretos, analisou.
Erros e abordagens injustas
O estudo também revisita erros de identificação cometidos pelo sistema de reconhecimento facial nos primeiros meses de 2025. Entre os casos relatados:
Um policial militar fardado confundido com foragido;
Um jardineiro voluntário de uma UBS preso injustamente;
Uma mulher grávida que teve parto prematuro após ser abordada pelo sistema.
Segundo a pesquisa, os erros ocorreram por falhas nos algoritmos de reconhecimento facial, que tendem a errar mais com pessoas negras, e por bancos de dados desatualizados, com mandados que já deveriam ter sido retirados do sistema.
O estudo também enfatiza que esses sistemas carregam potencial de viés racial. Uma pesquisa do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), de 2018, mostrou que sistemas de reconhecimento facial erravam até 34% ao identificar mulheres negras, mas apenas 1% com homens brancos.
Apesar disso, segundo os autores, as autoridades têm negligenciado esse risco de discriminação algorítmica.
Em junho, a prefeitura divulgou um relatório detalhando alguns dos erros:
53 pessoas foram conduzidas para averiguação e liberadas por ausência de baixa de mandados no banco de dados da Justiça;
6 pessoas foram liberadas após inconsistências cadastrais;
3 pessoas foram conduzidas para averiguação e liberadas (sem especificação adicional);
11 pessoas foram liberadas após abordagem, também sem detalhamento do motivo.
O CESeC analisou ainda que a divulgação de dados absolutos, como o número de prisões ou de imagens utilizadas, não permite avaliar com qualidade o impacto real do programa.
Segundo Thallita, isoladamente, esses números “não explicam se houve mudança nos indicadores de criminalidade, se o sistema é preciso, nem quais são os custos sociais, operacionais e financeiros da política em curso”.
“Ainda estamos longe do nível de transparência necessário quando se trata de uma tecnologia sensível como essa. Faltam informações fundamentais: quais algoritmos estão sendo usados? Eles passam por auditoria independente? Quantos erros foram cometidos? Que tipo de dado é armazenado, por quanto tempo, com que finalidade, e com qual base legal? Há critérios claros para as abordagens e detecções? Há supervisão externa?”, indaga.
Programa enfrentou críticas
Publicado em 2022, o primeiro edital do Smart Sampa previa que as câmeras poderiam identificar cenas de “vadiagem” — conceito considerado vago e discriminatório por organizações sociais. Após isso, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e o Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin) protocolaram uma representação contra o edital no Ministério Público de São Paulo.
Com a repercussão, a prefeitura suspendeu o pregão eletrônico para a contratação do sistema.
Em nota, a administração afirma que o Smart Sampa é um sistema avançado, que não utiliza cor da pele como critério, trabalhando somente com pontos biométricos faciais.
“Cabe destacar que o Smart Sampa é um sistema avançado que não utiliza cor da pele como critério, trabalhando apenas com pontos biométricos faciais. Todos os alertas são obrigatoriamente validados por agentes humanos, um nível de rigor que não é observado em sistemas de reconhecimento facial utilizados em outras partes do mundo.”